A “aura” do crítico: arquitectura não é monocultura



O Jornal Arquitectos #239, com tema de capa Ser Crítico, está finalmente disponível na versão online. Ali encontramos um conjunto de ensaios sobre a degradação do exercício da crítica no enquadramento contemporâneo da cultura e da comunicação global, da paisagem telemática, das redes sociais, do real-time e também, em particular, dos blogues.

Manuel Graça Dias lança o debate no seu editorial. Mais do que as questões que coloca – qual é o lugar do gosto?; o que é um «objecto crítico?; porque são acríticas as palavras da “moda”? – é a primeira frase do seu texto que melhor nos poderia servir de motivo de reflexão:

Criticar arquitectura: entender o fazer dos outros e orientar-se por aí; relatar as dificuldades sentidas, a quantidade de desacerto ou, pelo contrário, as sobreposições perfeitas.

Entender o fazer dos outros. O ponto de partida é generoso. Presume uma partilha intrínseca, um esforço em esbater a distância entre o crítico e o criador. A procura pelo entendimento, por uma forma de clarividência, mesmo perante o erro, perante a fragilidade da experiência humana na circunstância da sua história. Infelizmente, cedo se perde a referência aos princípios que ali se pareciam ensaiar. Graça Dias prossegue a sua exposição com uma visão sobre o papel do arquitecto:

Um arquitecto só deveria estar interessado em arquitectura! E a arquitectura será a arte de construir (bem) espaços confortáveis para albergar o homem e as suas necessidades, discreta ou directamente comprometendo a cidade, pondo em causa os valores mainstream, avançando alterações, maneiras novas, mas, sobretudo, adequando poeticamente o espaço a essa herança maior, a essa prova final que seria a sua autonomia funcional. O espaço ficar preparado (através da misteriosa proporção, da articulação inteligente da luz e das sombras, das situações escondidas), ficar preparado para ser muita coisa, servir muita coisa; continuar, depois de nós, garantindo sempre que ali nos sintamos bem.

As grandes frases têm o problema de reduzir o pensamento ao seu fundamento. Um arquitecto só deveria estar interessado em arquitectura! – eis o que não deixa de transparecer uma visão fundamentalista, em jeito de sermão paternal, neste caso sobre o que deveria interessar aos arquitectos. Como quase sempre, aquilo que escrevemos diz mais sobre nós próprios do que sobre os outros, do que sobre o mundo. A esta ideia poderíamos contrapor uma outra, em tempos avançada por Mark Wigley, considerando o arquitecto como um profissional da complexidade, um perito não em oferecer respostas mas em encontrar novas formas de olhar para as perguntas, para as interrogações do seu tempo.
O arquitecto será sempre uma figura de crise por esse mesmo motivo. Porque no seu trabalho se cruza uma complexidade infindável de planos de convergência, porque arquitectura é desenho, é cálculo, é jurídico, história, cultura, ambiente, mobilidade, é vida pública, é vida privada. É cidade e sociedade.
Um arquitecto deve estar interessado em tudo, na certeza de estar condenado a viver mergulhado no erro num mundo de crescente incerteza. A beleza da arquitectura está nisso mesmo, em não haver método ou fórmula, não existir certo ou errado, é sempre processo, estratégia, relação, evolução. A arquitectura não é monocultura.

Noutro texto desta edição do JA encontramos uma reflexão sobre o problema colocado pelos blogues ao panorama da crítica de arquitectura. Jorge Figueira intitula o seu ensaio com o título HOUSTON WE HAVE A PROBLEM: O fim da crítica de arquitectura. Uma vez mais estamos perante um texto que nos revela mais acerca do pensamento do seu autor do que da realidade que pretende descodificar.

Um dos problemas recorrentes no modo como os críticos parecem abordar o fenómeno dos blogues transparece na ausência de definição para o que se entende por este novo suporte de comunicação – ver Da blogosfera para a atmosfera. Jorge Figueira apresenta-nos como ponto de partida um entendimento que só pode ser traduzido enquanto expressão de um preconceito. Se muitas das patologias que ali se apontam são efectivamente relevantes – a perda de distância crítica, a irrelevância da imediaticidade, a confrontação estéril, a ausência de democraticidade real – não deixa de revelar um equívoco quanto à importância dos blogues, ao seu significado crítico real num panorama em que se estabelecem novas ideias e novas formas de falar sobre arquitectura – novos media. Seria desejável que tal evolução fosse acompanhada por um escrutínio académico, porque a incubação de novas formas de comunicação exige a construção de uma ética intrínseca ao seu funcionamento. A sua ausência deixa-nos vulneráveis ao caos, ao estabelecimento de comportamentos por default, sem referenciação e, tantas vezes, sem qualquer sentido.

Mas tal não nos pode deixar confundir a respeito da paisagem global da blogosfera, a partir da percepção momentânea construída por meia dúzia de blogues mais visíveis. Muito menos deverá validar entendimentos acerca da motivação dos bloggers, reduzidos a uma espécie de massa homogénea sem identidade, fazendo ignorar a multiplicidade e a riqueza presente numa parte importante do mundo online.
A escrita blogue é motivada pelo ressentimento e/ou pelo deslumbramento – qual o significado desta afirmação? Terá o autor a arrogância de presumir as motivações de milhões de bloggers? Ficarão os críticos mais apaziguados perante um tal entendimento, liminarmente binário e inevitavelmente pobre?

O conservadorismo assente em leituras frívolas acerca dos blogues por alguns críticos parece transparecer apenas um desconforto incompreensível, por nos encontrarmos perante uma plataforma espontânea, não solicitada, de produção de conteúdos. Mas o que temem afinal os críticos? O que estão os críticos a fazer para sustentar a sua relevância para lá da “aura”, para conduzir as direcções futuras do discurso arquitectónico, explorar novos formatos e ir além do pré-estabelecido?
A questão mais importante que se poderia colocar seria interrogar as razões para a ausência da academia e da crítica em todo este processo. É certo que as escolas e as revistas de arquitectura se balançam na necessidade de estabilidade, de definir referências num mundo em mudança. A rede é um território com limites móveis onde esse exercício é difícil, talvez mesmo impossível, mas que por isso mesmo não deixa de ser necessário.
A crítica precisa de aprender a correr riscos, algo que os bloggers deixaram há muito de temer. Em nenhum outro lugar podemos encontrar reflexões entusiásticas sobre arquitectura fundadas em motivos tão diversos como a iconografia da ficção científica, a experimentação gráfica conceptual, a paisagem especulativa dos jogos de vídeo, as estações espaciais e as bases lunares, os túneis de metro abandonados, a propagação infindável das favelas, as prisões secretas do Iraque, os quartéis-generais dos vilões dos filmes do James Bond, a base subterrânea do Batman e os castelos do Harry Potter.
O diálogo é rico e imprevisível, permitindo a todos participar em formas radicais de investigação e partilha. É uma nova ecologia complexa de conhecimento em constante mutação, aberta, acima de tudo, a uma nova geração de pensadores emergentes. A crítica e a academia deviam compreender o que isto significa. É que a porta da rede está escancarada e não há meio de voltar a fechá-la.

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