A velocidade mata depressa: o papel do urbanismo na prevenção rodoviária



Não acontece só aos outros

Há cerca de uma semana participei numa acção de formação promovida pela Prevenção Rodoviária Portuguesa sobre «Intervenção na infra-estrutura para redução da velocidade». Trata-se de uma iniciativa que pretende sensibilizar os diversos profissionais da área do urbanismo para as questões da engenharia de segurança rodoviária, em particular pelos riscos que a velocidade de tráfego coloca para todos aqueles que circulam no ambiente urbano. A vida, é certo, não é isenta de estranhas ironias. No dia seguinte à formação, numa viagem a Lisboa em dia de chuva, eu e a minha mulher vimo-nos perante um despiste do nosso automóvel de que resultou o embate violento contra os separadores da via. O carro, que ficou em muito mau estado, e as dores que nos vão acompanhar durante longas semanas, fazem prova do momento dramático que vivemos. Passado o aparato e o susto, procurando regressar à normalidade, tentámos brincar com a situação dizendo que durante a semana tinha tido aulas teóricas e no fim-de-semana a aula prática. Mas a verdade é que as imagens daqueles segundos terríveis, quando se pensa que o pior pode estar prestes a acontecer, ficarão gravadas nas nossas mentes durante muito tempo.

A velocidade mata depressa

Todos sabemos que a velocidade tem uma relação directa com os riscos da sinistralidade rodoviária. No entanto somos levados a confiar no sentimento de segurança transmitido pela tecnologia automóvel. Com os seus mecanismos de insonorização e estabilização das irregularidades da estrada, os carros fazem-nos esquecer que as leis da física se mantêm independentemente da tecnologia que nos leva a bordo. É certo que a engenharia automóvel salva vidas, com a sua capacidade de amortecimento de impacto em situações de acidente. Mas esquecemos facilmente que as capacidades humanas são as mesmas que sempre foram, com as suas falhas, resistências, limites e tempos de reacção.
As estatísticas da sinistralidade demonstram-nos com frieza o que está em causa. O risco de morte de um ocupante de um veículo ligeiro em caso de colisão frontal a 90 km/h é de cerca de 50%. Acima de 120 km/h, a probabilidade de morte abeira-se da totalidade. Mais do que isso, devemos ter sempre em presença que as estatísticas não são sobre números e que cada número conta uma história sobre vidas humanas, daqueles que morrem, dos que ficam gravemente feridos, dos seus familiares e amigos.



Uma das estatísticas mais surpreendentes para compreendermos os perigos da velocidade, em particular no espaço urbano, prende-se com o risco de morte em situações de atropelamento. Para os carros potentes dos nossos dias, uma variação de 20 quilómetros horários pode significar um ligeiro pressionar de acelerador, uma breve desatenção. E, no entanto, o risco de fatalidade aumenta de 5% para 45% entre as velocidades de 30 e 50 km/h. A 70 km/h esse risco é de 90%, ou seja, quase total.

Uma sociedade motorizada

Os acidentes de trânsito são a maior causa de morte violenta. Traduzindo: morrem mais pessoas nas estradas do que nas guerras que se travam no mundo. Os prejuízos para a sociedade multiplicam-se a muitos níveis: prejuízos humanos impossíveis de quantificar em vítimas mortais e feridos graves, nos custos de saúde, nas consequências emocionais e sociais, nas perdas de produtividade.
A sociedade portuguesa apresenta uma taxa de motorização muito superior à dos países do Norte da Europa. Vários factores contribuem para esta realidade: motivos de natureza social mas também o sentimento de ausência de alternativas que resulta de um mau planeamento das cidades, cujo crescimento foi alheio à organização de redes eficazes e próximas de transporte público acessível. Ainda assim, o bom trabalho efectuado na última década pelos vários intervenientes da prevenção rodoviária, no traçado das estradas, na vigilância e na sensibilização dos condutores, tem tido como resultado uma redução significativa dos casos de mortalidade nas estradas portuguesas. Mas o nosso país continua a apresentar uma taxa de mortalidade por atropelamento superior à média europeia, facto ainda mais dramático se considerarmos que estes mortos representam 46% do total da sinistralidade rodoviária, e que dentro destes a grande maioria são idosos e crianças (71%).

O papel do urbanismo

Para fazer frente a este problema começam hoje a ser ponderadas estratégias de acalmia de tráfego rodoviário, integrando o conceito de estrada «auto-explicativa» ao meio urbano. Trata-se de uma forma de induzir o bom comportamento através de uma correcta manipulação da percepção do condutor, introduzindo alterações ao ambiente da rua recorrendo a condicionalismos físicos, sinalização, equipamentos e outros elementos caracterizadores da rodovia.
É um trabalho que se estende ao domínio do desenho urbano chamando a si todos aqueles que intervém no planeamento das cidades: não apenas os profissionais da engenharia rodoviária mas também os urbanistas, arquitectos e paisagistas. Acima de tudo, importa compreender que estão em causa requisitos funcionais e normativos que são muitas vezes alheios à nossa formação de base mas cujo conhecimento e interiorização pode salvar vidas. É um tema muito extenso e a que voltarei aqui no blogue, mas de que deixo desde já a referência a duas publicações importantes publicadas pela Prevenção Rodoviária Portuguesa: o manual «Engenharia de Segurança Rodoviária em Áreas Urbanas: Recomendações e Boas Práticas» da autoria do Eng. João Sousa Marques, e ainda o livro «Recomendações para Definição e Sinalização de Limites de Velocidade Máxima» do Eng. João Cardoso.

Informação, conhecimento, sabedoria

O meu caso pessoal fez-me reflectir sobre a diferença entre informação, conhecimento e sabedoria. Tive a oportunidade de recolher muita informação sobre o tema da prevenção rodoviária, sobre os perigos da velocidade e as estatísticas da sinistralidade. Tinha bem presentes as palavras do Eng. João Cardoso, quando nos disse que em alturas de chuva os condutores reduzem a velocidade em valor inferior ao do risco acrescido pela perda de atrito do pavimento. Mas foi a experiência de um acidente que me fez traduzir essa informação em conhecimento, ao sentir a forma como esses números abstractos podem ter um impacto real nas nossas vidas.
Falta, no entanto, um passo ainda. É necessário desenvolver uma consciência mais profunda do que tudo isto significa para transformar o conhecimento em sabedoria, naquilo que nos faz alterar atitudes e mudar comportamentos. Pois é a sabedoria que salva vidas; mas a sabedoria não se ensina. E por isto é importante que todos demos um contributo, partilhando o conhecimento dos perigos para lá da abstracção dos números. E possa assim, cada um de nós, interiorizar esse conhecimento e, quem sabe, tomar pequenas decisões que podem, um dia, mudar o nosso destino.

6 comentários:

  1. Primeiramente, sinto muito pelo acidente, e espero que recuperem rapidamente do "susto".

    Infelizmente sou da opinião de que o condutor só aprende quando sofre no bolso... Penso que deve haver um uso efectivo de todos os meios disponíveis para inibir o excesso de velocidade... Inclusive o controlo automático da velocidade nas auto-estradas... Afinal a Brisa sabe a hora em que o veículo entrou e saiu, bem como a distância percorrida... Penso que não é difícil implementar um sistema informático para calcular a velocidade média do percurso e aplicar automáticamente a multa na portagem.

    ResponderEliminar
  2. Fica aqui uma ideia (radical?) de como se poderia reduzir as mortes nas estradas portuguesas: http://nulidades.wordpress.com/2010/05/24/como-reduzir-a-sinistralidade-rodoviaria-em-portugal/

    ResponderEliminar
  3. Deixo-vos aqui a minha própria dissertação sobre o assunto. Tenho ficado um pouco desiludido com a reacção das pessoas, de uma forma geral, mas deixo-vos aqui a ligação na mesma e espero que vos seja útil!

    http://www.rilhas.com/Documentos/VelociRap_007.html

    ResponderEliminar
  4. O assunto toca-me bastante porque faço 120Km diários de carro e como é óbvio preocupa-me.E há uma questão que cada vez mais me interrogo porque é que não é posta em causa: porque é que se vendem a pessoas comuns ( que não sejam pilotos de automóveis) para circular em estradas comuns ( que não sejam pistas automóveis) carros que atinjem 240Km por hora e mais quando o limite máximo das estradas portuguesas é de 120Km/h ? Não sei se a minha ´questão faz sentido ou não mas a mim simplesmente parece-me que mais uma vez como em quase tudo neste triste mundo em que vivemos o que conta é o negócio, o lucro, o dinheiro.

    ResponderEliminar
  5. Recentemente (à cerca de uma semana), a caminho do Algarve, eu e o meu namorado passámos por uma situação semelhante. Apareceu um coelho e ele ao tentar desviar-se por reflexo, fez com que o carro entrasse em despiste e fosse embater no separador central. Felizmente nada aconteceu para além dos danos materiais, mas ficou o susto, bem como a certeza de que o facto de estarmos a cumprir o limite de velocidade nos salvou a vida!

    ResponderEliminar
  6. Tânia, lamento o que vos sucedeu. São situações terríveis, seguidas de semanas ou meses de aborrecimentos pessoais com seguros e afins. Espero que tudo se resolva depressa e a vida volte ao normal o mais depressa possível. Um abraço e boa sorte,
    Daniel.

    ResponderEliminar