[complicar é preciso]

Sexta-feira



A verdade não mora aqui nem consta que esteja a caminho. Com a legitimidade de quem contribuiu com o seu voto para a mudança política que estamos a viver, não posso deixar de acrescentar que desejo, mais do que verdadeiramente espero, que o futuro governo se venha a revelar capaz de trazer um melhor contributo para os tempos que aí vêm.

Sou levado a começar esta exposição batendo numa tecla recorrente: a realidade é complexa. A realidade é, reforço até à exaustão, muito complexa. Não pode este país continuar a advogar soluções simples para essa complexidade.
Somos um país culturalmente atrasado em relação às expectativas que temos de nós próprios. Esse atraso cultural reflecte-se numa desonestidade intelectual que nos é instrínseca. Somos inseguros, e por isso desproporcionadamente defensivos. Este problema não se resolve com um governo de génios nem com um ditador infinitamente competente. Resolve-se olhando para aquilo que somos e pensando no que podemos fazer para o melhorar. Falar numa aposta na ciência e na tecnologia é certamente um passo na direcção certa. Denunciar a nossa improdutividade é fazer diagnóstico mas não consiste em nenhuma cura. A nossa fraqueza começa bem antes disto, na educação. No que somos e na forma como actuamos.

Não sou especialista da área nem venho aqui falar de educação numa perspectiva técnica. Fazer um retrato empírico baseado em exemplos será igualmente uma simplificação e a demagogia, já se sabe, faz-se com bons princípios. Mas olhemos para alguns exemplos e vejamos o que podemos aprender com eles.
Olhemos para aquele pai que encolhe os ombros quando o filhote começa aos pontapés a um estranho. Ou que diz ao senhor doutor que o menino não tomou os medicamentos porque "ele não quis". Olhemos para a nossa falta de cortesia. Quando alguém faz algo de bom, certamente não fez mais que a sua obrigação. Mas quando faz algo de mal todos estamos lá para apontar o dedo acusador.
Olhemos para muitas das relações que criamos com padrões de telenovela. Ouvindo o Júlio Machado Vaz a falar, é difícil rever nas suas palavras o mundo irreflectido que nos rodeia.
Olhemos para o modo como nos comportamos na estrada. Dificultamos a vida aos outros e complicamos a nossa própria vida. Haverá um problema mais evidente de improdutividade mental.

Complicar é preciso. Num país em que cada um reflecte muito pouco sobre o seu comportamento e não está disposto a fazer concessões, esperamos do estado, do governo, do país ou seja lá do que for a que somos alheios para resolver os nossos problemas. E se estamos infelizes, a culpa é certamente da medicina que também isso nos deve.
É muito curioso ouvir os portugueses a falar dos seus problemas. Quando se fala em educação, em sub-desenvolvimento, em segurança rodoviária ou outra coisa qualquer, lá se ouve alguém queixar que o estado deve ter a culpa. Os cartazes não prestam, andam a gastar dinheiro em submarinos ou são todos uma cambada de chupistas. Mas então se o problema é a fraca qualidade do estado, invista-se num estado de qualidade. Ora, isso também não, porque o custo do estado é que é o problema.

A infantilidade é total e não deixa antever nada de bom. Incapaz de promover a única reforma de que o estado verdadeiramente precisa, que é a da Qualidade, o estado estará condenado a envelhecer e enfraquecer naquilo que devia ser a sua capacidade técnica. Preso a uma teia de incompetentes que tomaram o elevador partidário para os mais altos cargos dirigentes da coisa pública, não haverá lugar no estado para aqueles que realmente fazem falta: dirigentes competentes na técnica e na gestão.
O futuro não é assim difícil de prever. A pouco e pouco o estado irá deteriorar-se e a sua incapacidade será cada vez mais gritante. Na derrocada dos erros sucessivos, mais fácil será a sua corrosão e a perda de competências para grupos de interesse que rondam tudo aquilo que cheira a rentabilidade financeira (e nada mais).

Uns dirão que será melhor assim. Dizer que não só pode ser especulação minha, reconheço-lhes. Seja como for, se há uma coisa que podemos aprender com a História é que tudo aquilo que é insustentável está condenado a ruir. Mas não se iludam, porque esses processos sempre se fizeram com o sofrimento de todos.

Alguém disse um dia que a dor é a mãe da mudança. E talvez como em outros momentos da nossa história, seja a dor a charneira de que verdadeiramente precisamos para que a transformação aconteça. Um dia.

1 comentário:

  1. Fiquei com a ideia de que uma das ideias-chave é a de que o governo é a montra de um país com demasiados idiotas incompetentes e portanto outro perfil não poderia ter ele próprio. É com um travo de amargura que concordo...

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