[porto côvo]

Terça-feira



Porto Côvo é um lugar onde a força do mar, a dureza das rochas e a vasta extensão do interior ainda preservado se unem para criar a rara beleza das coisas improváveis. Essa beleza, que vem das coisas que só a Natureza sabe criar com os seus lentos processos, permanece visível a todos os que por ali passam e é de esperar que resista por muitos mais anos. O mesmo já não se pode dizer da aldeia de pescadores que ali surgiu, encastrada no refúgio da baía e no topo do pequeno promontório.

No Verão de 1990, Rui Veloso regressou à velha aldeia para tocar um concerto único na praça principal. Tinha acabado de lançar “Mingos e os Samurais”, aquele que viria a ser um dos seus discos mais populares e mais vendidos de sempre. Foi um daqueles momentos em que tudo parecia encaixar no sítio certo, partilhado pelas centenas de pessoas que enchiam completamente a praça quadrada.
Naquela noite, o “pai do rock português” tocou por duas vezes a música que havia composto apenas quatro anos antes e que celebrizou o nome da aldeia para sempre.

Talvez nenhuma das pessoas que ali tenham estado, como eu aos dezassete anos, tenha imaginado o quanto Porto Côvo iria mudar nos dez anos seguintes. Transformada em atracção turística, a aldeia tornou-se alvo de uma procura intensa por visitantes nos meses do Verão, que viria a ser a alavanca para o inevitável crescimento urbanístico.

Existe um fino equilíbrio, tantas vezes violado, entre a necessidade de proteger a identidade de um sítio e a necessidade de promover as alterações que resultam da evolução do nosso modo de vida. O medo e a incapacidade de controlar essas transformações (tantas vezes por incompetência dos vários níveis da administração pública do território) conduzem facilmente à protecção fundamentalista das coisas do passado. Perante o medo de se “fazer mal” prefere-se sempre o “não fazer”. Assim se transformam cidades inteiras em parques temáticos de interpretações questionáveis da história (ou da sua “imagem”), em cidades fósseis ou espectaculares cidades mortas.
Este tipo de fundamentalismo certamente criticável nasce e aprofunda-se, no entanto, como reacção à falta de regras que permitem que o crescimento se torne numa força destruidora de todas as referências que constituem o património de um lugar. Como sempre, o equilíbrio é sempre o ponto mais difícil de atingir, oscilando-se entre a paralesia da vivência e a voragem destruidora da especulação.

Existem certamente exemplos mais drásticos para ilustrar estes problemas do que Porto Côvo. Ali, afinal, são ainda visíveis os traços da velha aldeia. Sentado numa das esplanadas da antiga praça pombalina é quase possível imaginar como seria a vida naquelas partes quando a parte nova não existia.
Não consigo, no entanto, deixar de rever ali numa pequena escala todos os erros que se vão fazendo em Portugal por falta de cultura urbanística, ou simples falta de cultura. É como se Porto Côvo, verdadeiramente, não tivesse crescido, mas uma outra coisa qualquer que ali se veio encostar. A velha lógica da rua/passeio/muro/casa multiplicada à exaustão até onde for possível, sem hierarquização de ruas, sem estrutura pedonal, sem espaços públicos, sem nada. Apenas casas e casas e mais casas que certamente renascem para a vida durante os meses de Verão para logo hibernarem durante o resto do ano como uma aldeia fantasma.
Depois vêm aquelas coisas que dão a volta à barriga de qualquer um. Lotes construídos em arruamentos por acabar, ainda em tout-venant e com as caixas de esgoto penduradas no ar. Eis o país em todo o seu esplendor. Ainda estou para descobrir como é possível constituir lotes e vendê-los, e depois construir-lhes casas, quando as obras de urbanização do próprio loteamento nunca chegaram a ser terminadas. E eis agora, dez anos depois, a câmara municipal a anunciar obra em cartazes porque finalmente alcatroou o parque de estacionamento, fez um jardim público e arranjou a frente da praia grande. Então vejamos, o loteador vende as casas sem acabar as ruas, e o estado vem depois a custo fazer tudo aquilo que devia ter resultado da viabilidade do próprio empreendimento.

O mal de Porto Côvo não foi afinal o interesse económico ou a necessidade de crescer, mas antes a ausência de regras de planeamento e de cultura urbanística. É que o “fazer mal” não é uma fatalidade do crescimento urbanístico; o “fazer mal” é resultado da ignorância e da falta de cultura, de que são responsáveis tanto o agente privado como o agente público. Também aqui a nossa pobreza não se faz de falta de meios mas da falta de saber. A nossa pobreza está nas pessoas.

1 comentário:

  1. Pois está.
    Também é a velha história do progresso, com que chegam também as tão faladas acessibilidades. Mas, depois das estradas, cada vez há menos razões para ir. Para algumas pessoas, pelo menos, porque a multidão parece não se importar.--JRF

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